A Tributação dos Investidores Estrangeiros

04/02/2021

Não-discriminação deve se aplicar à tributação de não residentes

Por Alessandra Okuma, doutora em direito tributário e sócia do Izu Medeiros Advogados

https://www.conjur.com.br/2019-dez-16/alessandra-okuma-discriminacao-tributacao-nao-residentes

Na contramão de esmagadora maioria que espera definição quanto à exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins, eu aguardo outro pronunciamento por parte do Pleno do STF, a saber, o do RE 460.320. Nele, dois temas relevantes serão examinados: a posição hierárquica dos tratados internacionais em matéria tributária e o conteúdo jurídico do princípio de não-discriminação internacional[1].

Em termos esquemáticos, discute-se a constitucionalidade (ou não) da extinta cobrança de Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) sobre dividendos pagos a residentes no exterior (acionistas da Volvo residentes na Suécia), sob duas perspectivas: a da isonomia em matéria tributária; e a do princípio da não-discriminação previsto nos Tratados para evitar Dupla Tributação (TDTs), dos quais o Brasil é signatário.

Referido imposto incidia exclusivamente sobre os dividendos pagos a não residentes no Brasil, enquanto aqueles pagos a residentes no Brasil eram isentos. A decisão do STJ, que será revista pelo STF, foi assim ementada:

TRIBUTÁRIO. REGIME INTERNACIONAL. DUPLA TRIBUTAÇÃO. IRRPF. IMPEDIMENTO. ACORDO GATT. BRASIL E SUÉCIA. DIVIDENDOS ENVIADOS A SÓCIO RESIDENTE NO EXTERIOR. ARTS. 98 DO CTN, 2º DA LEI 4.131/62, 3º DO GATT.
– Os direitos fundamentais globalizados, atualmente, estão sempre no caminho do impedimento da dupla tributação. Esta vem sendo condenada por princípios que estão acima até da própria norma constitucional.
– O Brasil adota para o capital estrangeiro um regime de equiparação de tratamento (art. 2º da Lei 4131/62, recepcionado pelo art. 172 da CF), legalmente reconhecido no art. 150, II, da CF, que, embora se dirija, de modo explícito, à ordem interna, também é dirigido às relações externas.
– O art. 98 do CTN permite a distinção entre os chamados tratados-contratos e os tradados-leis. Toda a construção a respeito da prevalência da norma interna com o poder de revogar os tratados, equiparando-os à legislação ordinária, foi feita tendo em vista os designados tratados, contratos, e não os tratados-leis. – Sendo o princípio da não-discriminação tributária adotado na ordem interna, deve ser adotado também na ordem internacional, sob pena de desvalorizarmos as relações internacionais e a melhor convivência entre os países.
– Supremacia do princípio da não-discriminação do regime internacional tributário e do art. 3º do GATT. – Recurso especial provido” (STJ, REsp 426.945- PR, j. 22.06.2004)

De um lado, a isonomia em matéria tributária, como se sabe, impede distinções entre contribuintes que se encontrem na mesma condição. O artigo 150, II da Constituição Federal é ainda mais contundente e proíbe qualquer discriminação em função da atividade desenvolvida, assim como da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos. Portanto, as leis tributarias podem desigualar apenas contribuintes que de fato estejam em situações diferentes e, ainda assim, mediante critérios adequados.

Qual seria, então, o critério válido para justificar o tratamento desigual entre contribuintes no que tange à tributação da renda? O ideal é a capacidade contributiva, como determina o artigo 145, § 1º da CF. Entretanto, é possível que se eleja outro critério, desde que razoável e proporcional.

De outro lado, o princípio de não-discriminação previsto nos TDTs observa lógica própria. Primeiro, o artigo 98 do CTN estabelece que “os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha”. Segundo, o pacta sunt servanda [2] há de ser devidamente considerado. Terceiro, enfim, há também a incidência da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, cujo artigo 31 determina que “um tratado” seja “interpretado de boa-fé segundo o sentido comum atribuível aos termos do tratado em seu contexto e à luz de seu objetivo e finalidade”. Portanto, uma obrigação pactuada no âmbito internacional deve ser cumprida e ser refletida por normas internas de modo coerente.

O entendimento do STF não é pacífico quanto à prevalência ou não de tratados sobre leis tributárias internas, em caso de conflito. Todavia, há decisão unânime do Plenário (RE 466.343) no sentido de que tratados de direitos humanos se sobrepõem às leis ordinárias[3]. No voto condutor do ministro Gilmar Mendes, sinaliza-se para a necessidade de que a antiga jurisprudência que equiparava tratados à lei seja “revisitada criticamente”, como se lê:

“Importante deixar claro, também, que a tese da legalidade de lei ordinária, na medida em que permite ao Estado brasileiro, ao fim e ao cabo, o descumprimento unilateral de um acordo internacional, vai de encontro aos princípios internacionais fixados pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, a qual, em seu art. 27, determina que nenhum Estado pactuante ‘ pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”

Ainda que se entenda pela não prevalência de tratados internacionais sobre leis internas, deve-se observar que os TDTs têm escopo específico de impedir situações de dupla tributação internacional. São, portanto, normas específicas que não podem ser revogadas por normas gerais de tributação de não-residentes no Brasil, dado que lex generalis non derogat lex specialis (art. 2, §2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro- LINDB).

Mas vamos aos fatos. O TDT Brasil-Suécia proíbe tratamento discriminatório entre contribuintes do imposto sobre a renda, com base na nacionalidade (artigo 24, §1º), assim entendida como (artigo 24, §2º):

“1. Os nacionais de um estado contratante não ficarão sujeitos no outro estado contratante a nenhuma tributação ou obrigação correspondente, diferente ou mais onerosa do que aquelas a que estiverem sujeitos os nacionais desse outro estado que se encontrem na mesma situação.

2. O termo “nacionais” designa:
a) todas as pessoas físicas que possuam a nacionalidade de um estado contratante;
b) todas as pessoas jurídicas, sociedades de pessoas e associações constituídas de acordo com a legislação em vigor num estado contratante.
4. As empresas de um estado contratante cujo capital pertencer ou for controlado, total ou parcialmente, direta ou indiretamente, por uma ou várias pessoas residentes do outro estado contratante, não ficarão sujeitas, no primeiro estado, a nenhuma tributação ou obrigação correspondente diversa ou mais onerosa do que aquelas a que estiverem ou puderem estar sujeitas as outras empresas da mesma natureza desse primeiro estado.”

Trocando em miúdos: de acordo com o §1º acima, os suecos não ficarão sujeitos, no Brasil, a nenhuma tributação ou obrigação correspondente, diferente ou mais onerosa do que aquelas a que estiverem sujeitos os brasileiros que se encontrem na mesma situação.

Os acionistas da Volvo na Suécia são pessoas jurídicas constituídas de acordo com a legislação em vigor e, portanto, qualificam-se como “nacionais da Suécia”, protegidos pelo princípio da não-discriminação aqui tratado.

E o §4º acima é ainda mais específico: impede que empresas brasileiras, cujo capital pertença — direta ou indiretamente — a residentes na Suécia, fiquem sujeitas no Brasil à tributação mais onerosa ou obrigações diferentes do que as impostas às empresas brasileiras da mesma natureza.

Como destacou Alberto Xavier, “as sociedades cujo capital pertencer ou for controlado, total ou parcialmente, direta ou indiretamente, por um ou mais residentes no exterior — ou seja, na terminologia do direito interno, as filiais e subsidiarias de sociedades estrangeiras — não ficarão sujeitas num Estado a nenhuma obrigação ou tributação correspondente diversa ou mais onerosa do que aquelas a que estiverem ou puderem estar sujeitas as outras empresas desse mesmo Estado. É a Verbot der Betriebstattendiskrimisnierung de que fala a doutrina alemã”[4].

Esse parágrafo impede que a Volvo, sociedade cujo capital é controlado por empresa sueca, fique sujeita, no Brasil, a tributação ou obrigação diversa ou mais onerosa que as demais empresas brasileiras.

Conclui-se, então, que nos termos do artigo 24 do TDT: a) a Volvo, empresa brasileira cujo capital pertence a residentes na Suécia, não pode ter obrigação diferente de outras empresas de capital brasileiro nas mesmas condições e; b) os sócios suecos da Volvo não deveriam sofrer a retenção do imposto de renda na fonte sobre os dividendos, se os sócios brasileiros de outras empresas em idêntica situação não sofrem.

Como sempre, é necessária atenção aos detalhes, pois a lei brasileira exige o imposto de “pessoas físicas ou jurídicas residentes ou domiciliadas no exterior”. Sim, o critério discriminante da lei é a residência, que aparentemente é diferente da nacionalidade.

Mas a diferença é ilusória, já que os critérios de qualificação de “nacionais” e “residentes” confundem-se nas leis internas brasileiras.

De acordo com o artigo 1.126 do Código Civil “é nacional a sociedade organizada de conformidade com a lei brasileira e que tenha no País a sede de sua administração”. Esses critérios estavam em vigor desde 1940, por força do Decreto-lei 2.627/40 e do artigo 300 da Lei 6404/76.

A legislação tributária é omissa quanto ao conceito de “residência” das pessoas jurídicas. O Código Tributário Nacional adota termo semelhante, o “domicilio” e determina que para as pessoas jurídicas será o lugar da sua sede ou de cada estabelecimento.

No entanto, como regra geral, uma empresa estrangeira só poderá se estabelecer no Brasil se for constituída de acordo com as leis brasileiras. Isso porque, a LINDB — veiculada pelo Decreto 4..657/42, artigo 11, §1º dispõe empresas estrangeiras não poderão ter filiais, agências ou estabelecimentos no Brasil, salvo se autorizadas pelo Governo Brasileiro.

O procedimento é — e sempre foi — complexo, caro e moroso, como se verifica da Instrução Normativa do Diretor do Departamento Nacional de Registro do Comércio 7/2013, motivo pelo qual a grande maioria das empresas estrangeiras que atuam no Brasil, o fazem por intermédio de uma pessoa jurídica brasileira.

Assim, a alternativa que resta aos investidores estrangeiros é constituir uma empresa brasileira, de acordo com as leis locais e com sede de administração aqui e assim atuam no mercado, sendo remunerados por dividendos que serão remetidos ao exterior.

Consequentemente, na legislação brasileira os conceitos de “residência” e “nacionalidade” são equivalentes, à medida em que ambos pressupõem a combinação de dois elementos — a presença de um estabelecimento no Brasil e a constituição de acordo com as leis brasileiras.

Qualquer discriminação de contribuintes com base na “residência” equipara-se àquela pela “nacionalidade” e reflete uma discriminação indireta, uma hidden discrimation, como apontou Ramon Tomazela Santos:

“Vale ressaltar que clausula convencional em foco também veda a utilização de outros critérios que produzam os mesmos efeitos discriminatórios daqueles proibidos em razão da nacionalidade. Daí decorre que tanto a discriminação direta baseada inteiramente na nacionalidade quanto a discriminação disfarçada (hidden discrimination) que produz o mesmo efeito, podem viola o artigo 24, parágrafo 1º, da Convenção Modelo. Como exemplo de discriminação disfarçada, imagine-se que a Finlândia conceda o direito a determinado abatimento fiscal apenas para os indivíduos que falam o idioma finlandês. Como esse idioma não é difundido e é difícil de ser aprendido por um não nativo, pode-se dizer que os beneficiados pelo abatimento fiscal, em sua maioria, serão Finlandeses, de modo que essa lei fictícia poderá ser considerada como uma discriminação disfarçada baseada na nacionalidade e, portanto, incompatível com a clausula de não discriminação. Outro exemplo, conquanto exagerado, mostra como funciona a discriminação disfarçada. É importante esclarecer que o fato de o critério de diferenciação também alcançar outras pessoas que falam o idioma finlandês, além dos nacionais da Finlândia, não tem o condão de validar, por si só, a regra fiscal que, disfarçadamente, discrimina com base na nacionalidade, sobretudo na hipótese em que o número de pessoas estrangeiras que atendem ao critério eleito pela regra fiscal é mínimo. ”[5]

Assim como no exemplo acima, a norma que exige o IRRF exclusivamente sobre os dividendos remetidos aos sócios não residentes no Brasil é uma discriminação disfarçada, uma vez que o número de empresas estrangeiras que se estabelece no Brasil por autorização do governo federal é bastante restrito. E certamente pouco significativo em comparação com a quantidade de investidores estrangeiros que, para atuar no Brasil, constitui uma empresa aqui residente, remunerando-se por dividendos.

Admitimos que, se não fosse a exigência — quase proibitiva — de autorização do governo brasileiro para que empresas estrangeiras se estabeleçam no Brasil, talvez não houvesse discriminação indevida. A compreensão total da questão exige que se capte essa sutileza.

Assim sendo, a cobrança do IRRF somente sobre dividendos remetidos aos sócios não residentes no Brasil esbarra no artigo 24 do TDT Brasil-Suécia.

Nesse quadro, resta torcer para que o STF reflita sobre tais aspectos quando do julgamento do RE 460.320 e profira decisão favorável aos contribuintes, corrigindo a injustiça que hoje se verifica.


1 OKUMA, Alessandra. Princípio da não discriminação internacional no direito brasileiro.  São Paulo: PUC, 2005, 361p; _____Princípio da não discriminação e a tributação das rendas de não residentes no Brasil. In: TÔRRES, Heleno Taveira (Coord). Direito tributário internacional aplicado.  São Paulo: Quartier Latin, 2003. p. 255-285.

2 XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 8ª ed. ver. e aum. 2016 , p.122.

3 Na mesma linha é a opinião do Min. Barroso: “A Convenção de Havana sobre Tratados (1928), ratificada pelo Brasil, já trazia a posição do direito internacional sobre a matéria. Como regra geral, ela fixa a supremacia dos tratados sobre a legislação interna, sem distingui entre leis constitucionais e ordinárias, como em seus arts. 10 e 11.” (BARROSO, Luis Roberto. TIBURCIO, Carmen. Direito Constitucional Internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 1ª edição, 2013. P 185).

4 XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 8ª ed. ver. e aum. 2016 , p. 248.

5 SANTOS, Ramon Tomazela. Estudos de Direito Tributário Internacional. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2019, pp 261- 262. Frisamos que, embora o autor reconheça invalidade de “hidden discrimination”, discordamos em relação à equiparação entre residência e nacionalidade.