O regime tributário das controladas indiretas

10/02/2021

Os negócios de uma pessoa jurídica são regulados pelas leis do país em que foram praticados

Por Alessandra Okuma, doutora em direito tributário e sócia do Izu Medeiros Sociedade de Advogados

No cenário atual, em que se discute a reformulação do imposto sobre a renda e o possível ingresso do Brasil na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), é necessário revisitar alguns conceitos e princípios que norteiam essa tributação.

Como é sabido, nosso sistema impõe restrições para tributação da renda. O primeiro ponto a ser observado é que deve existir renda (limite material); o segundo, essa renda deve estar disponível ao contribuinte (limite temporal); terceiro, deve haver um critério de conexão que permita a incidência da lei no espaço (limite espacial). Nosso foco é examinar o limite espacial de incidência das leis tributárias.

Todas as leis têm limites de vigência, validade e eficácia, decorrentes da soberania[1]. Somente podem atingir pessoas e/ou fatos vinculados a um determinado território, seja pelo critério de conexão pessoal, seja pelo critério de conexão material. Nesse sentido, são os artigos 8º e 9º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB):

“Art. 8º  Para qualificar os bens e regular as relações a eles concernentes, aplicar-se-á a lei do país em que estiverem situados. (…)

Art. 9º Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem”

Igualmente, a Convenção de Direito Internacional Privado de Havana, incorporada no Brasil pelo Decreto 18.871/29, em seu art. 220, determina que “a gestão de negócios alheios regula-se pela lei do lugar em que se efetua” [2].

Uma empresa residente no Brasil deve seguir as leis brasileiras, independentemente da residência ou nacionalidade de seus sócios.

Se, eventualmente, essa empresa brasileira atuar na Argentina, ao praticar tais negócios ela estará sujeita às leis portenhas. E se a mesma empresa brasileira adquirir quotas de uma empresa residente no Chile, que ali atue, sua conduta deve obedecer às leis chilenas. Em resumo: os negócios de uma pessoa jurídica são regulados pelas leis do país em que foram praticados.

É limite imposto pelo Direito Internacional Público que os países somente podem disciplinar relações que envolvem sujeitos vinculados aos seus respectivos territórios (pela nacionalidade ou residência), assim como fatos nele ocorridos. Não é por outra razão que execução, no Brasil, de sentenças estrangeiras sujeita-se à prévia homologação, nos termos do art. 105, I, ‘i’ da Constituição Federal.

A tributação da renda deve respeitar os limites da soberania. Por isso, adotam-se dois regimes de tributação das rendas. O primeiro, dos não residentes, justificado pela territorialidade que permite a aplicação das leis aos fatos ocorridos no respectivo território, quando vinculados por elemento de conexão material (presença da fonte de produção do rendimento).

E o segundo, dos residentes no país, cuja conexão pessoal que autoriza a incidência de imposto em bases mundiais, sobre todos os rendimentos auferidos, a despeito da localização física.

Os países são livres para editar leis tributárias, desde que respeitados os limites postos no direito internacional público, cuja fronteira espacial é seu território. O alcance das leis deve ser fundamentado pela adoção de critérios de conexão que vinculem as pessoas (residência ou nacionalidade) ou os fatos (fonte pagadora ou fonte produtiva).

Daí uma empresa residente no Brasil estará obrigada a pagar o imposto sobre a renda brasileiro (pelo critério pessoal), mesmo quando auferir rendimentos em outros países. Também estará obrigada a pagar o imposto de renda brasileiro uma empresa alemã que preste serviços aqui (sujeita à retenção na fonte).

No entanto, o Fisco brasileiro não poderá exigir imposto sobre fatos praticados pela mesma empresa alemã em seu próprio país ou em outros países que não o Brasil.

E se os sócios dessa empresa alemã forem brasileiros? A situação não se altera. A empresa residente na Alemanha só deve imposto de renda se praticar negócios no Brasil.

E seus sócios? Esses sim deverão pagar o imposto sobre a renda sobre os dividendos recebidos ou no encerramento do ano-base pela controversa ficção jurídica da Lei 12.973/2014.

Mas, se essa empresa alemã tiver investimento em uma empresa chinesa? Os lucros por ela auferidos na China não deveriam ser alcançados pelo imposto de renda brasileiro. Não há critério pessoal nem material que justifique a tributação de controladas indiretas, ao contrário do que pretende a Lei 12.973/2019. Vejamos o quadro abaixo.

Toda a tributação de não residentes deve ser fundamentada pelo vínculo entre o sujeito e o ordenamento, nos limites espaciais do território.

A “territorialidade” é o próprio âmbito de eficácia de um ordenamento jurídico vigente[3]. Ausente o elemento de conexão (material ou subjetiva), não há como justificar aplicação de tributos a quaisquer contribuintes, mormente os não residentes.

Consequentemente, não podem ser tributados, no Brasil, fatos praticados no exterior por sujeitos não residentes, por absoluta falta de conexão entre suas atividades (elemento material) ou seu status subjetivo (elemento pessoal) e o ordenamento jurídico.

Como regra, para o direito internacional tributário o elemento de conexão entre o Estado e território (fonte ou pessoa) deve ser DIRETO e não INDIRETO[4]. Não há permissão para o exercício da soberania tributária se não houver vinculo de residência ou nacionalidade (em relação à pessoa tributada) ou a presença da fonte (produtiva ou pagadora) no respectivo território.

E, repetimos, o vínculo há que ser direto que admita a tributação no Brasil de lucros auferidos por controlada indireta localizada no exterior.

Os lucros auferidos por controladas indiretas pertencem a sua respectiva controladora. Os lucros auferidos pela controlada indireta são regulados pelas leis do país de sua residência.

Eventual presunção de distribuição de dividendos deveria ser veiculada pelas leis do Estado do beneficiário, no caso, respeitados os tratados para evitar dupla tributação (TDT) aplicáveis ao caso[5]. Não pertencem ao investidor residente no Brasil e, portanto, as leis brasileiras não podem alcança-los.

Enquanto não distribuídos, os lucros auferidos pela controlada indireta não pertencerão a sua controladora, nem tampouco à investidora residente no Brasil. Os dividendos originados por lucros auferidos no Exterior, enquanto não pagos à controladora, não podem ser incluídos na base de cálculo do IRPJ brasileiro, diante da ausência de elemento de conexão.

As sociedades constituídas no exterior são dotadas de personalidade jurídica, com completa separação patrimonial de seus sócios: têm patrimônio, direitos e obrigações próprios.

Sociedades estrangeiras só podem ser tributadas pelo Fisco brasileiro com fundamento no princípio da territorialidade, ou seja, pelos rendimentos auferidos por fatos praticados no território nacional.

As leis brasileiras não podem criar obrigações para sociedades residentes no exterior que conduzem seus negócios fora do Brasil, ainda que essas sejam vinculadas (controladas ou coligadas) a pessoas aqui residentes.

E mais, como alertou o Alberto Xavier a tributação na forma da Lei nº 12.973/2014 implica também distorção no cálculo da “renda”[6]. O lucro das controladas indiretas não pode ser integralmente adicionado à base de cálculo da controladora brasileira, pois, deve se respeitar toda cadeia vertical, considerados eventuais prejuízos da pessoa jurídica “intermediaria”.

Por conseguinte, a pretensão da Lei nº 12.973/2014 de exigir o imposto de renda brasileiro sobre lucros auferidos no exterior por controladas indiretas, quando esses sequer foram disponibilizados para respectiva controladora – também residente no exterior – esbarra em princípios do direito internacional público, especificamente à territorialidade, bem como no conceito de renda disciplinado no art. 43 do Código Tributário Nacional.

Esses argumentos, embora relevantes, ainda não foram examinados pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais nem pelo Poder Judiciário.


[1] BORGES, José Souto Maior. Curso de Direito Comunitário – Instituições de Direito Comunitário Comparado: União Europeia e Mercosul. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 169, 183 e 185.

[2] “Não há dúvida de que os cidadãos de um Estado, onde quer que se encontrem, devem obediência às suas leis. Estas, no entanto, não poderão ter força coercitiva além das fronteiras nacionais; e um Estado não pode exercer sua jurisdição em território estrangeiro, salvo com o consentimento do Estado a que pertença o território. Nem por isso ficará o primeiro inteiramente desprovido de meios contra seu nacional que, fora do país, viole suas leis. (ACCIOLY, Hildebrando. Tratado de Direito Internacional Público. V. 1. 3 ed.  Edição Histórica. São Paulo: Quartier Latin, 2009, pp. 473-474).

[3] TÔRRES, Taveira Heleno (coord.) Direito Tributário Internacional Aplicado. São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 72.

[5] TDTs firmados pelo Brasil com a Dinamarca, a Noruega e as Republicas Tcheca e Eslovaca dispõe que “os lucros não distribuídos de uma sociedade anônima de um Estado Contratante cujo capital pertencer ou for controlado, total ou parcialmente, direta ou indiretamente, por um ou mais residentes de outro Estado Contratante não são tributáveis no último Estado”.

[6] “Logo, a tributação no Brasil de lucros de uma controlada indireta no exterior per saltum da primeira controlada direta representava, na legislação anterior, verdadeira ofensa ao art.43 do Código Tributário Nacional, na medida em que se estaria tributando, ainda que potencialmente, o patrimônio da controladora, tomando por base renda alheia, que no máximo constitui expectativa de renda para a controladora direta, mas jamais para a controladora no Brasil.” XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional no Brasil- Rio de Janeiro: Editora Forense, 2015, 8ªed. p. 456.